A Casinha Feliz

Alfabetização recalibrada (Roberto Lent)

A educação depende da ciência do mesmo modo que a saúde. Tenho repetido este mantra em vários canais por onde me manifesto, e cada vez me convenço mais dele. A ciência é a raiz, e vai do conhecimento básico dos fenômenos da natureza e da sociedade até a invenção de produtos e processos que protejam e beneficiem as duas. Por isso é fundamental construir e manter um ecossistema de política pública nas universidades e instituições científicas que apoie a pesquisa sobre educação, integrando-a com o “chão da escola”, isto é, com o trabalho dos professores e gestores.

Escrevi esse prólogo porque ele fica muito evidente quando precisamos enfrentar o problema da alfabetização. Aprender a ler em português não é tão difícil como em inglês, por exemplo, porque a nossa é uma língua considerada “transparente”, na qual a representação escrita dos sons da fala é bem direta e pouco variável. Diferente do inglês, que pode representar o som da letra “f” também por “ff”, “ph” ou “gh”. Mas ainda assim, no português, a língua falada no dia a dia envolve inúmeras variações de pronúncia, entonação e velocidade de cada pessoa. A palavra escrita “abacate”, na fala cotidiana, pode ser “bacate”, “bcati” ou “bcatch”. Por isso, no início da alfabetização as crianças aprendem de modo tatibitate a falar abacate: a- ba- ca-te.

A tarefa dos professores alfabetizadores é capacitar as crianças a correlacionar os símbolos escritos — grafemas — com os sons falados — fonemas. Ao longo desse processo, elas vão recalibrando essa correspondência grafema-fonema para levar em conta as variações sonoras da fala cotidiana nas várias regiões do Brasil. É uma recalibração mesmo, como a chamam os linguistas. De que modo o cérebro consegue isso? Essa pergunta foi abordada por um grupo holandês de pesquisa, estudando crianças de seu país, cujo idioma é também transparente como o nosso. Fizeram isso acompanhando ano a ano crianças dos 8 aos 11, período em que a alfabetização básica já se deu, e durante o qual ocorre o fenômeno da recalibração, isto é, de ajuste entre as variações sonoras da fala e a mais estrita representação escrita dos sons.

O experimento foi engenhoso: os pesquisadores pediam às crianças, dentro e fora de uma máquina de ressonância magnética, que lessem as palavras “aba” e “ada”, ambas sem significado em holandês, após ouvi-las com fones de ouvido, pronunciadas por uma voz pausada. Só que um algoritmo de computador alterava o som da consoante intermediária produzindo nove variantes fonéticas graduais entre o “b” e o “d”: metade parecendo o som do “b”, a outra mais próxima do “d”, e uma no meio. A intenção era avaliar quanto as crianças conseguiam associar as duas palavrinhas escritas no monitor com suas variantes sonoras.

As crianças aprendiam rápido, aumentando a ativação das áreas do córtex cerebral da visão, simultaneamente com as áreas de decodificação da fala. Interessante que essa grande ativação cerebral diminuía depois de um certo tempo, quando elas já estavam craques na identificação das variantes de pronúncia das palavras. Já tinham aprendido a recalibrar. É o que acontece também quando uma criança é alfabetizada em um idioma, falando fluentemente um outro. Lê em voz alta um com o sotaque do outro.

Os resultados do grupo holandês representam um belo exemplo do ecossistema que mencionei no início. Os pesquisadores conseguiram revelar como se dá a dinâmica cognitiva de recalibração da escuta dos sons variantes da fala, representados por letras e sílabas invariantes. É um processo essencial para a alfabetização mais avançada. Também identificaram marcadores desse processo no cérebro, permitindo perceber quando ocorrem transtornos da leitura em algumas crianças, como as disléxicas. Um auxílio para pediatras e professores. A ciência ajuda a calibrar e recalibrar a alfabetização.

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